Colóquio-Artes, n.º 34
Outubro de 1977
Será necessário constituir uma ciência das situações, a qual se baseará em elementos colhidos na psicologia, nas estatísticas, no urbanismo e na moral. Estes elementos deverão concorrer para um fim absolutamente novo: uma criação consciente de situações.
Guy Debord, Contre le Cinéma
Eis o nosso tempo: subitamente reconheceu-se o poder das palavras. Fazer gato sapato, claro, todos o podem. Utilizar mesmo indignamente a palavra amor socialismo liberdade irmãos camarada ou revolução. Ou ingenuamente ó revolução meu amor. Dizer: eu te amo ou independência libertação poder povo. Dizer povo. Desculpar-se com o povo em nome do povo arte para o povo bonecos para o povo. Bailarinas em tutu palácios para o povo o metropolitano de Moscovo. Um palácio para o povo que ainda ontem hoje vivia em isbas de madeira. E porque não? Um discurso para o povo. Esse discurso é sempre uma vitória do povo. Um respeito. Obrigado a negociar, o patrão diz Vossa Excelência ou Camarada ao delegado sindical. Dobra a língua. Reverência. E o mundo é outro apesar de o poder estar longe de deixar de o ser. Deitar fora ou esquecer todos as antigas excelências falar arraia miúda social democracia. Un mot un point: c'est tout.
Un mot un point. As palavras vanguarda começar. Absolutamente novo absolutamente começar rotura. E até as palavras aparentemente gastas arte cultura. Ou a sua contestação semântica anti-cultura anti-arte. E a palavra alternativa. Sim, um parêntesis, a palavra alternativa. Depois falaremos do zero. Da estrutura (Eternal Network querido Filliou). Depois falaremos do rigor. Rigor sim meu amor como a honestidade de quem nunca foi órfão do pai. Porque o Pai era bom. Como um guru, como Almada Negreiros, como um bom conselheiro: aquele que dá tudo, porque só lhe interessa começar. O COMEÇAR.
Alternativa. Os campus americanos dos anos sessenta. A luta contra a guerra iníqua e mais a tecnologia e os futuros watergates para esquecer tudo. A luta pela informação a contra cultura a lembrança de Fourier o falanstério a Comuna e as comunas a vida colectiva e apaixonada. A consciência (no fundo marxista, leia-se todo o Marcuse, até o W. Reich) de que o verdadeiro começar é uma distância e o paradise now uma utopia para já. E de que é no entanto, na distância, na América que se fará a revolução. Que o mundo novo será no Mundo Novo. E que isso é longe como a queda de todos os ídolos falsos, de todos os sistemas de empobrecimento e contenção como esperar e o que vier virá; como: mundus senescit. Entretanto nascer, começar, absolutamente de novo, ser moderno, tanto faz a palavra de Rimbaud. Porque na verdade quando eu nasci isso tinha acontecido. E tinha morrido, Entretanto tinham-me também ensinado as palavras, as quase situações, tinham cientificamente (fenomenologia, Husserl, topologia) preparado os novos instrumentos, as ferramentas da verdadeira liberdade (Marx, Husserl, Saussure, Freud, Duchamp... e mais Marcel Mauss, todos os outros, e mesmo as contradições). Entretanto tinham-me ensinado a semântica e mais a semiologia as palavras. Foi nesse quadro que surgiu a ideia a palavra alternativa. Não esperar. Lutar (como um militante do futuro, engagé dizia-se quando se dizia les lendemains qui chantent) sim engagé militante e o que for da táctica e dos ensinamentos de Maquiavel se necessário. Mas entretanto alternativamente viver a plenos pulmões ó alegria ó alegria ó alegria. Lutar e porque alternativamente viver. Viver a plena alegria e porque alternativamente lutar.
Mas claro, como todo o tempo isto foi um tempo. As palavras ainda não estavam assim tão defendidas. Ainda delas um mau uso é de esperar. Ainda a qualquer hora o diabo vem. Diabos diabinhos domésticos mas de trazer por casa pode ser a nossa casa e a nossa casa um mundo o mundo. Aqui ó jardim da europa à beira mar plantado dar novos mundos ao mundo. Aqui apesar de tudo os teus seios e os teus também. Porque uns e outros convergem para mim meu orgasmo. Como as tuas imensas coxas se me sabes ler nas entrelinhas e até julgam eles-elas que machista a virilidade. As encobertas pedras do megalítico, os menires, os cromeleques. Almendros Monsaraz a reforma agrária o querido Henrique de Barros e claro o Álvaro Cunhal também o culto fálico todas essas contradições eu digo sem vergonha e só enrubescendo um pouco como um adolescente a minha pátria. Uma história a respeitar. Aqui também a luta é de palavras. Palavras que valem não sei quantos mas muitos quilos de trotil, e mais ainda muitas motas, picaretas. Palavras, conceitos, mitos, rios maiores. Palavras como vanguarda, o novo, rotura, subversão e alternativa embora de história mais recente, ou liberdade e as outras que sabeis. Que sabeis dizeis ou não porque no "fundo de um leito antigo" podeis ter perdido toda a razão mas não nem uma migalha do saber. E é de sabedoria que eu falo.
Portanto alternativa, agora justiça lhe seja feita, para o futuro e a família das palavras que ao futuro se referem. Justiça que exigia rigor. Rigor obstinado radical implacável. Tu podes-me falar de não-obra. Eu bem te entendo, não há obra-de-arte senão integralmente vivida eternal network ou se quiseres é rigorosamente o mesmo a poesia deve ser feita por todos o poder a quem trabalha, etc. Entretanto volta contra o diabo as armas do diabo (isto é as nossas que o diabo nos roubou). Se me queres falar de uma arte pobre, Germain Celant, de uma expressão minimal ou mesmo do silêncio, Guy Debord, Cage, é sempre uma atitude que tem que tomar forma, discurso, e em última análise, palavra. Que nunca será palavra, isto é liberdade, sem um discurso, e em última análise, palavra. Que nunca será palavra, isto é liberdade, sem um discurso... contra o qual a palavra e começar se conjugam. Daí o rigor, daí a importância das nossas camaradas as "mulheres da limpeza" a obra bem feita, os competentes carpinteiros, pintores (de parede), electricistas. Daí a importância de reconhecer humildemente as nossas responsabilidades didácticas. Daí o zero o rigor. Começar. Paraíso Perdido? Paraíso Reencontrado. A árvore da vida. A leste do paraíso deus colocou um anjo com uma espada de fogo para guardar o caminho que conduz ao pé de. Desejo de. Atravessaremos estes desertos enfrentaremos as espadas de fogo? não sei, não sabemos. Mas há outro caminho?
José-Augusto França, in Diário de Lisboa, 21/III/77:
"Começar a partir do Zero é dificílimo e perigosíssimo e logo porque é perigoso e difícil de atingir o Zero de que se supõe partir, e que muitas vezes, senão sempre, não é tão zero como isso."
"...Mas a verdade é que o meu amigo Ernesto de Sousa não tem outra alternativa."
...Mentir, ou partir do zero. Talvez seja sempre esta a verdade e o reconheceremos facilmente quando dispusermos dessa ciência das situações que tanto nos falta. Mas para já agora que se deslaçaram as malhas que o império tece, porque esperamos?
estou só
é tudo simples
lavei por dentro a casa
vesti de branco por fora a casa
pus tudo nos seus lugares
fiz cálculos e espero-te
lutando sempre
o tempo não interessa
nem a morte
o meu corpo é o teu corpo a nossa casa
o teu corpo
branco
e arrumado
e a memória do teu calor
vemos como se dissipam todas as dúvidas
as névoas
o escuro
na quentura alternativa e diurna
da casa é tudo simples
desfiz-me dos insectos repelentes
Para começar observe-se que ao entrar no "espaço de Belém" o visitante não deparava com uma exposição: deparava, ou penetrava em várias exposições: "Os Pioneiros do modernismo em Portugal" (exposição fotográfica documental); A Floresta (penetrável e mini-exposição do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra); "A vanguarda e os meios de comunicação – O Cartaz" (penetrável com a primeira de uma série de exposições sobre este tema); e enfim, a "exposição" Alternativa Zero (propriamente dita). Além disso havia espaço(s) para a realização de acontecimentos vários, alguns espontâneos, outros programados. Entre estes mencionemos desde já alguns que foi possível levar à prática. Vários concertos. Dois com Jorge Peixinho, o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, elementos do Grupo Colecviva e do ADAC (em formação), tendo-se num destes admitido a participação espontânea do público (concerto-happening regulado com "sinais de trânsito" de Melo e Castro). Concerto do Grupo ADAC. Concerto de ocarinas junto de uma máquina cinética com projecção aleatória (de Júlio Bragança); os concertantes: Lídia Cabral e Pedro C. Cabral). Dentro do programa de "Alternativa Zero", mas nas salas do AR.CO, realizaram-se ainda: um concerto com Constança Capdeville e o G. Colecviva, e uma sessão de jazz com o Grupo Anarbande do Porto, e poesia experimental por Melo e Castro, Silvestre Pestana e José Conduto. Foram projectados vários "filmes" e séries de diapositivos dos seguintes operadores. Fernando Calhau, Ângelo de Sousa, Melo e Castro, Ana Hatherly, Ernesto de Sousa, António Palolo, Carlos Calvet, Artur Varela, Vítor Pomar, Fernando Matos, Graça Pereira Coutinho, José Carvalho, Leonel de Moura e Vítor Belém.
De Fernando Calhau houve experiências de "simultaneismo" com vídeo, projecção fixa e "filme".
No domínio dos acontecimentos, citemos ainda:
– Akashâ Escolar (José Conduto, José Carvalho, Palolo, etc.), com gravação directa, vídeo e circuito interno de televisão;
– Conferência-acontecimento por André Gomes
– O Todo e a Parte, pelo C.A.P.C.
– Não há sinais inocentes de E. M. de Melo e Castro
Quanto à exposição Alternativa Zero podia ler-se num dos catálogos editados ("catálogo descritivo"):
Nesta “exposição” participaram: Helena Almeida, Alvess, Pedro Andrade, André Gomes, Armando Azevedo, Vitor Belém, Júlio Bragança, João Brehm, Fernando Calhau, Alberto Carneiro, José Carvalho, Manuel Casimiro, E. M. de Melo e Castro, José Conduto, Noronha da Costa, Graça Pereira Coutinho, Da Rocha, Ernesto de Sousa, Lisa Chaves Ferreira, Robin Fior, Ana Hatherly, Lagarto & Nigel Coates, Alvaro Lapa, Clara Menéres, Albuquerque Mendes, Leonel Moura, António Palolo, Jorge Peixinho, Jorge Pinheiro, Vítor Pomar, José Rodrigues, Joana Rosa, Túlia Saldanha, Julião Sarmento, António Sena, Sena da Silva (com a pintura de um eléctrico que circulou pela cidade de Lisboa), Ângelo de Sousa, Artur Varela, Mário \/arela, Ana Vieira, João Vieira (com a oferta de um espaço vazio para a livre criatividade do público), Pires Vieira, A. F. Alexandre, Helder M. Ferreira, João Miguel F. Jorge, Joaquim M. Magalhães, Lídia Cabral, etc. José Manuel Costa Alves e João Oliveira fizeram a cobertura fotográfica. O “design” da exposição e o cartaz foram da autoria de Carlos Gentil-Homem, o estudo gráfico para o catálogo foi realizado por João Melo. A “exposição” foi organizada segundo uma perspectiva crítica de Ernesto de Sousa.
Alguns destes participantes manifestaram-se em público pela primeira vez. Sobre os 41 primeiros nomes registados foi realizada a seguinte estatística provisória: 10 expuseram pela primeira ou segunda vez em Portugal; 15 são "professores" no ensino superior ou em escolas especializadas (E.S.B.A.P., E.S.B.A.L., Conservatório de Lisboa, Universidade Nova, AR.CO, C.A.P.C., etc.), 18 (43%) vivem em Lisboa, 14 (34%) vivem fora de Lisboa, Porto, Coimbra, Évora-Monte, Algarve, 9 (21%) vivem no estrangeiro, Paris, Nice, Londres, Bruxelas, Holanda. Quanto às peças expostas, algumas foram criadas expressamente para Alternativa Zero outras porém cobrem um período largo de anos. As mais antigas são: Máquina 11, de J. Bragança (1969) e Uma Floresta para os teus Sonhos, de Alberto Carneiro (1970). 17 peças são de 1974 ou anos anteriores; 18 de 1975–76; as restantes, cerca de 20, de 77 ou 76/77. Esta estatística mostra objectivamente a diversidade perspectiva e porventura prospectívica deste empreendimento.
Registe-se também a colaboração do "Living Theatre": sinal de uma participação do Teatro, mais complexa e que não chegou a ser levada à prática por diversos obstáculos materiais e de organização. A presença do Living verificou-se de colaboração com o Museu Nacional de Arte Antiga, Sociedade Nacional de Belas Artes, Escola de Música do Porto, Museu Machado de Castro de Coimbra, e os apoios financeiros da Fundação Gulbenkian e da Secretaria de Estado da Cultura. Foi também esta Secretaria que proporcionou o apoio financeiro básico a "Alternativa Zero".
A questão principal que se pôs desde princípio, e põe ainda relativamente a esta exposição pode expressar-se nestes termos: dadas as suas características ("tendências polémicas da arte portuguesa contemporânea") redundaria este empreendimento em mais uma produção de que beneficiaria somente uma elite culta, ilustrando "apenas um isolamento, cada vez maior, dos artistas que nela participaram, em relação às classes trabalhadoras" – como se escreveu recentemente num boletim cultural? Sem pretender responder agora a esta momentosa questão, registem-se os seguintes dados. A exposição foi visitada por mais de 10 000 pessoas. Os sábados e domingos, dias ligados à frequência do Mercado do Povo, registaram as seguintes médias: 800 pessoas aos sábados, 1200 pessoas aos domingos. Durante os dias de semana a exposição foi constantemente visitada por grupos escolares, desde os primários aos universitários, que frequentemente a adoptaram como trabalho escolar, Assinale-se a título de exemplo: a E.S.B.A.P. fretou um comboio especial para a deslocação Porto-Lisboa de alunos e professores; num dos últimos sábados estiveram presentes mais de uma centena de crianças... pintando e circulando livremente. É óbvio que pelo menos durante Março de 1977, alguns dos artistas participantes tiveram – talvez pela primeira vez – a oportunidade de meditar objectivamente sobre o seu não isolamento... Ainda e este respeito (isolamento ou, enfim, rotura do isolamento) registemos duas opiniões de "especialistas da cultura":
Eduardo Prado Coelho, Opção 10/III/77:
"Alternativa Zero abre para Belém uma resposta fundamental: a de aproveitarmos este espaço que é o que temos à mão no possível, e fazermos dele lugar de intervenção, cultura outra, festa sempre. Se isto não é irrealizável, trata-se agora de o começar a provar."
(...)
Rocha de Sousa, Opção, 17/III/777:
"Ernesto de Sousa teve a coragem de passar por cima de certos preconceitos recentes, convidando com olho clínico os artistas susceptíveis de se movimentarem com alguma desenvoltura em todas as 'alternativas zero' da cultura vanguardista da nossa praça, sem excluir os emigrados que foram buscar noutras fontes europeias (sobretudo europeias) a inspiração para um gesto novo sobre o homem, e sobre o mundo. Desta escolha e em função de uma montagem criteriosa e bem apoiada logisticamente, aí temos 'uma exposição aberta, com todas as consequências possíveis nesta sociedade, inclusive concorrer (ainda que pouco) para transformá-la'. Um texto de aviso prévio esclarece-nos, nesse sentido, que a iniciativa comporta uma atitude didáctica e não pretende propor esta ou aquela corrente estética, nem qualquer definição de vanguarda."
Esta afirmação do crítico de Opção (ele próprio pintor, professor, responsável cultural, etc.) está certa, sobretudo quando aponta a intenção de uma "atitude didáctica". Também é verdade que tal atitude excluía definições prévias de vanguarda ou a preferência por "esta ou aquela" corrente estética, baseava-se numa escolha rigorosa, face a produtos manifestados (alguns históricos) e até alguns propostos (com rigor e algum risco) a artistas mais jovens. Não se suponha porém que há nesta atitude qualquer espécie de eclectismo. Esse rigor baseava-se num fundo crítico-ideológico (que referiremos adiante) e numa dupla opção metodológica. A saber:
primeiro: que a única atitude ou função didáctica válida no nosso tempo é de natureza estética;
segundo: que todas as vanguardas estéticas que realmente merecem esse nome se confundem ou convergem para uma única que chamarei a via conceptual.
Por isso "em Belém" havia uma "máquina cinética" (o cinetismo, como o construtivismo é uma das origens da via conceptual) e havia uma floresta-conceito; mas não havia pinturas emolduráveis ou esculturas "plintáveis", Por isso "em Belém" havia uma máquina para música bioelectrónica uma "secretária para uma sociedade em vias de construção", mas não havia objectos essa mentira, e repressão a todos os projectos, obras acabadas, negações de liberdade. Claro que a prática desta exposição levantaria muitos problemas; o que corresponde rigorosamente à sua praxis. Por exemplo, pode ser que para a Clara Meneres a sua Mulher-Terra-Viva seja um belo objecto escultórico (o sentido das formas, a mão e o seu erotismo disciplinado) e para mim, essencialmente, um claro, renovado projecto...
Jorge Listopad, Expresso, 25/III/77
"Clara Meneres com a sua tumba-mulher. Alguém, sem cantar (é pena), aparava a relva do púbis (a natureza, não descansa nem enquanto vocês dormem, a segunda-natureza-a-arte-idem)..."
Esse alguém, era a própria Clara Meneres, o artista. Eu até consideraria assim o projecto: o artista que é escultor e professor de escultura projecta assassinar-a-natureza com seu sentido-das-formas (a escola) e isso transformou-se numa bela luta quotidiana, exactamente o que agora se diz: uma performance.
Por causa daquele rigor, e por causa das espadas de fogo que nos esperam a leste do Paraíso, eu assumi o papel de "instrumento do destino", como diz o Angelo de Sousa; e um instrumento assim, que é a via da razão (também não há outra, podíamos apostar com Pascal), se necessário separaria o Pai do Filho, o Esposo da Esposa, Rigor ou humildade, como quiserem.
É claro que não há só opções metodológicas, eu, pecador-me-confesso, sei que tenho uma ideologia. Canto escuro ou grito alerta e público; experiência íntima, ínfima, e raras vezes confessada, ou táctica e estratégia aprendida ao arrepiar das mentiras culturais como qualquer Marquesa (de Merteuil, por exemplo); esta ideologia é ao fim de tantos anos de luta um dado, ou uma fatalidade, como quiserem. Em sua maior parte. E daí a "perspectiva" um jogo franco. Alguma coisa, claro, ficará na manga ou no corpo que justifica a manga. Mas essa pequena parte desculpem é só para os amigos. Mais íntimos. E mesmo esses...
A prova, enfim! que a maior parte desta ideologia é pública é que ela veio a público. E o espanto ó terra portuguesa que não és tão ingrata como dizem, ela veio a público correctamente e é ó re-espanto! Com expressa simpatia.
José Luís Porfírio, Brotéria, Maio/Junho 77
"Torna-se evidente que não é possível fazer um discurso unitário sobre uma manifestação tão diferenciada como foi a Alternativa, sobre cada operador, as suas motivações, os resultados do seu trabalho, etc. Impossível também ou inútil pegar na ideia-força da vanguarda e falar dela. No entanto, há um discurso comum para além do espaço de Belém, para além do mês de Março que reuniu a exposição: um discurso, uma responsabilidade-crítica (como vem escrito no catálogo) e sobretudo, como quanto a mim, uma mitologia da vanguarda tal como José Ernesto de Sousa a vem propondo em notas, estudos, artigos, conversas, acções, cumplicidades, com o enorme mérito de não ter qualquer organização atrás de si (e gente para trabalhar...) mas conseguir mobilizar gentes e vontades, fazer de gritos dispersos um possível discurso comum, unindo sem castrar as diferenças, justamente porque reúne aqueles que em Portugal também querem ser diferentes."
“Nestes anos últimos José Ernesto tem deliberadamente perseguido, buscado a Vanguarda e os seus mitos, pegando numa palavra ou num gesto, desvendando intenções que aos próprios 'operadores' escapavam, numa actividade crítica que não propõe propriamente conceitos operatórios, que não lê, porque vive e não pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo, pondo em circulação palavras-chave ou ideias-força, veiculando sonhos e utopias, a carne e o sangue duma comunicação artística que perdeu ou abandonou se não o seu corpo pelo menos o seu esplendor físico."
"Não sei se o 'Living Theater' é, como disseram os entendidos, apenas a memória de si próprio,– ou, o que vem a dar no mesmo, o seu próprio mito; interessa sim saber que ele veio ajudar a sublinhar os mitos que construíram a própria alternativa, até na comunicação, por vezes difícil, por vezes sistemática e forçada, que estabeleceu ou tentou estabelecer com o público, assim como, na exposição, mito e comportamento (rito) se transformam num jogo-armadilha, num teste para entendidos lerem, numa negaça a discursos como este e a toda e qualquer acção."
Que "Alternativa Zero" não foi, nem pretendia ser apenas "um teste para entendidos lerem", provam-no os números que atrás referimos.
Citemos entretanto um testemunho e uma profecia.
Paulo Alexandre Nunes Pereira, 13 anos, Escola Ferreira Borges:
"Tenho a informar que é a primeira exposição deste género de arte que eu visitei e apreciei. Esta exposição de arte contemporânea relaciona-se no meio de vida de todos nós. É preciso observar com uma atenção muito especial e saber resolver a incógnita que nos apresentam. Esta arte de expressão criativa e de uma maneira um pouco imaginária, cria e desenvolve em nós um espírito de criatividade."
A profecia, Eduardo Prado Coelho, numa introdução ao catálogo:
"Virão assim trabalhadores dos que davam passeios ao domingo, haverá crianças perdidas órfãs de Klee e Magritte, gentes de nenhuma exposição e apenas habituadas ao rigor das imposições, eles hão-de vir aqui, junto a vós, às vossas constelações de sinais, sentir, como dizia o outro Braque-Bach de noutra vida de que lhes falaram e que lhes falhou. Serão já noite dentro fogueiras remendadas de sono, de algum riso, da muita incompreensão que lhes ensinaram pela boca abaixo, da perplexidade de ninguém saber para que serve ao certo tudo isto, mas para quem sabe ao certo para que serve isto também de trabalhar, e dar o seio, e ouvir Ópera em S. Carlos, e beijar um sexo, e colar etiquetas sobre caixas de rebuçados, e chorar de vergonha e medo, quem sabe?"
Pelo que observei posso dizer que foi assim: fogueiras remendadas de sono, incompreensões que lhes ensinaram pela boca abaixo, mas também o sentimento de outra vida de que lhes falaram e lhes falhou, uma incógnita que é preciso saber resolver. Mas, claro, também foi um teste para entendidos lerem... Não é o que estamos ainda fazendo?
Iria mais longe. Além de ser um destino, atingir a categoria de entendido é humildemente uma profissão, em última análise algo que deve contribuir para uma criação consciente de situações. "Alternativa Zero" foi a tentativa consciente de criação de uma situação simultaneamente estética e didáctica.