Vida Mundial, n.º 1871
24 de Junho de 1975
"Vós sois todos intelectuais, camaradas!... Os intelectuais são com frequência ignorantes... Para passar da ignorância ao conhecimento é necessário agir e ver; é o que se chama aprender...”
Mao Tsé Tung em "Uma Conversa com os Redactores do Jornal do Chansi-Soueiyuen"
"Só as frentes de libertação nacional se encontram hoje em plena luta revolucionária, e isso apenas nos chamados países subdesenvolvidos... "
(Algures... in Herbert Marcuse).
Levanto-me com a cabeça pesada, são 8 horas. Ontem estive a traduzir cuidadosamente as 4 cartas do meu amigo Robert Kramer e a responder, bem como a outro correio. Deitei-me às 5. Agora, tenho de ter as ideias claras e escrever esta crónica, o que implica muita coisa, reler a mesa-redonda" do J.N. intitulada novo-ricamente "Revolução Cultural", procurar nos meus desarrumados arquivos uma célebre nota da Quinta Divisão sobre os "pintores da minha terra", e mais e mais (e agora a fita da máquina encravou lá tenho que sujar os dedos... ). À 1 hora isto tem de estar pronto, às 2 sou eu que tenho de estar numa mesa-redonda sobre
aquela história do Instituto Português de Cinema (os meus colegas estiveram até de madrugada a redigir um comunicado que eu me limitarei a assinar... Às 6 tenho de estar na SNBA (pela primeira vez aceitei fazer parte de um júri), o que tem muito que se lhe diga, mas sempre defendi júris e críticos das calúnias dos invejosos), e às 8 encontro-me com a escultora belga Live Pelsmeker... Faremos uma projecção no ARCO de diapositivos (com os seus sonomobiles e música do Grupo Logos de Gante), e ainda talvez de um filme do Calhau. Mas ao mesmo tempo devemos receber Mário Pedrosa, o grande crítico e teórico de arte, ex-presidente da AICA e ex-director do Museu de Santiago do Chile (perceberam os tais imbecis? AICA – Santiago do Chile – Allende – Mário Pedrosa), e correr de novo à SNBA, onde se inaugura a exposição de "colagens". Bom, voltar a casa aí pelas 2... e pegar de novo na correspondência ou enfim fazer aquela montagem sumária do Super 8 que filmei na Festa da Electricidade e por que esperam os amigos da Dinamização... A carta para o Robert Filliou já está atrasada de mais de um mês, mas a montagem também não pode demorar.
Em resumo: eu sou um trabalhador, não acham?
Pois, um trabalhador intelectual, e depois?
Há uma grande diversidade de trabalhadores intelectuais. Aqui ilustramos uma engenhosa ideia publicitária do Antigo Regime. Trabalhadores, o Novo Regime espera muito da vossa invenção e trabalho!
Isto faz-me recordar o seguinte episódio. Eu estava numa reunião de trabalhadores, convidado. A certa altura um dos camaradas disse: "Porque eu sou um dos trabalhadores desta instituição, um dos autênticos... que fazem os caixotes, que transportam as obras de arte". (O leitor está já a topar e eu digo de caras: era a Comissão Executiva dos Trabalhadores da Gulbenkian.) Aí, eu interrompi: "Perdão, eu também sou um dos trabalhadores, um dos autênticos". O episódio ficou por aí, havia coisas mais urgentes a discutir. Mas a verdade é esta: ninguém me tira da cabeça que eu sou um dos trabalhadores, e um dos autênticos... ou o camarada carpinteiro da minha rua com-loja-própria; como os camaradas pintores e escultores, o camarada ministro ou chefe de divisão (sem sono) e, evidentemente, aquele meu amigo que diz "que é profissional da revolução". E até, já lá vamos, o camarada operário da Lisnave ou o camponês "cooperante" de Casebres. Todos somos trabalhadores... há entre nós grandes diferenças. Mas certamente que todos temos isto em comum: repudiamos o anonimato.
É apoiando-se nessas diferenças que muita gente joga (mal) nos tempos que vão correndo, justificando-se "em nome dos trabalhadores", o que é uma maneira de nos tratar anonimamente. Já noutro lugar o disse: isto pode ser uma nova forma de explorar os trabalhadores, de explorar o trabalho alheio. Pode ser, e cruamente: a exploração da mais-valia, simbolicamente falando, acumulada pela força do trabalho. O proveito de uma burguesia ou pequeno-burguesia, mais ou menos intelectual, mais ou menos dirigente. Pode ser uma maneira de iludir os problemas concretos, invocando o nome dos trabalhadores (ou da Revolução, ou da revolução cultural...) como dantes se invocava o nome de Deus. Tartufo sabia dessas práticas. Mas não só: muito boa gente, de muito boa-fé pode cair em erros semelhantes.
Por exemplo... Bom, o melhor é não dar exemplos, porque nem esta crónica nem as outras que vou dedicar ao assunto chegariam... Vamos antes, agora, fazer a introdução do que será um largo comentário à tal mesa-redonda. Título e tema: Revolução Cultural. Participantes: o Jornal Novo (ou melhor, o seu director, e ainda talvez outro trabalhador-redactor não identificado). Eduardo Prado Coelho, Mário Dionísio, Natália Correia e, quase diríamos no banco dos réus, Ramiro Correia.
Porque digo no banco dos réus?
Muito simplesmente porque:
– O Ramiro Correia é autor, co-autor ou simplesmente responsável principal de uma das coisas mais graves e mais importantes que se fez neste País depois do 25 de Abril: a Campanha de Dinamização Cultural e Acção Cívica.
– Quem faz coisas positivas (ou melhor, discutivelmente positivas) e que vão para além da simples tarefa bem executada (ó trabalhadores!!!) torna-se, virtualmente, réu.
Aqui e em qualquer parte do mundo. Quem o mandou? A que título é que pretende transformar o mundo? Em delegação de quem? por essas e por outras que muita gente cruza os braços... Mas a verdade é que cruzar os braços é uma traição. O trabalhador da Lisnave não aperta só o parafuso com perfeição, e é coerente consigo próprio, associando-se responsavelmente à comunidade a que pertence e combatendo as contradições dos outros, isto é, da sociedade toda que o aliena. Quase todos os outros trabalhadores, desde os artesãos e oficiais-do-seu-ofício, aos intelectuais, têm de combater também as suas próprias contradições, têm de combater consigo-próprios. Essa é que é a grande distinção entre o proletariado industrial e os outros trabalhadores. E a luta contra-si-próprio é uma luta contra o egoísmo e a fuga às responsabilidades. Nesta luta tanto o pequeno rendeiro como o intelectual têm alguma coisa a perder – o que faz que a célebre fórmula do Manifesto Comunista só se aplique inteiramente ao proletariado, assalariado industrial ou agrícola; o que faz que só estas classes sejam verdadeiramente a vanguarda de qualquer situação revolucionária.
Aos intelectuais e, em particular, aos dirigentes políticos ou governamentais correspondem formas muito diversificadas de responsabilidade, colectiva e individual.
Voltemos agora à mesa-redonda, à revolução cultural e ao banco dos réus.
Digamos desde já: esta mesa-redonda parece-me muito positiva, imensamente positiva. Como o tal debate no Centro Nacional de Cultura (o réu era o mesmo), foi uma das raras vezes em que houve de facto "diálogo".
Bom, mas não iniciámos esta série de crónicas para "dizer bem" ou, muito menos, lisonjear os camaradas e ainda, muitíssimo menos, os camaradas-do-poder. Disso eles não precisam. Terminarei hoje (ou começarei) com o tema: responsabilidade.
Positivo: no diálogo do CNC, em frequentes declarações públicas, na recente mesa-redonda, o poder (neste caso, desculpa camarada Ramiro Correia, o poder és tu) reconhece: "nós erramos, podemos errar, nós reconhecemos que podemos errar... quase uma obsessão, mas é muito positivo. (Compare-se com a atitude indigna de outros "senhores" respondendo por exemplo aos cineastas com insultos e considerações despropositadamente soezes.) Por vezes, diríamos até que o camarada Ramiro tem demasiada paciência, por exemplo, quando insistem com ele que a campanha tem sido sobretudo de agitação política e muito pouco cultural; isto depois de todas as explicações, e ainda como se a "agitação política" não fosse também eminentemente cultural... Mas passemos adiante.
O que eu quero dizer ao camarada Ramiro Correia é que reconhecer apenas genericamente o erro é muito pouco e pode até ser uma maneira de fugir às responsabilidades concretas do erro, assim como religiosamente bater no peito. Voltarei a este assunto, mas vou terminar com um exemplo.
Exemplo: O célebre comunicado da Quinta Divisão, largamente difundido pelos meios de comunicação social e, naturalmente, dirigido ao País, sobre a não menos célebre "Exposição de Paris", que-foi-hipocritamente-adiada-mas-na- realidade o comunicado foi emitido nos primeiros dias de Junho passado.
Esse comunicado era o que se pode chamar genericamente de desastre crítico sobre um sector cultural – o das artes plásticas –, que muito justamente Mário Dionísio tinha considerado na "história da resistência portuguesa". Mas, pondo de parte as generalidades, esse comunicado continha duas não-verdades gravíssimas. Resumidamente:
a) Afirmava que os trabalhadores da Gulbenkian se tinham oposto à referida exposição. É rematadamente falso. E aqui faço emenda a uma afirmação minha anterior. Eu tinha escrito, por errada informação, “que o assunto nem tinha sido discutido na respectiva Comissão de trabalhadores”. Ora, não foi bem isso que se passou, e o que se passou é bem mais grave: o assunto foi de facto discutido na Comissão Executiva dos Trabalhadores da Gulbenkian; a Comissão "decidiu" que não era da sua competência tomar qualquer posição no assunto. Estou autorizado a afirmá-lo. Tão fácil imaginar que depois disso alguém, servindo-se miseravelmente ou levianamente dos trabalhadores, levou a Quinta Divisão a afirmar o contrário do que fora decidido. Neste processo, o desrespeito pelos trabalhadores é objectivamente total.
b) o comunicado atribui responsabilidades no processo aos pintores que tinham sido convidados a mandar obras suas a Paris. Ora, os trabalhadores-pintores apenas tinham aceitado um convite "oficial".
Neste caso, a Quinta Divisão disse também uma não-verdade, e assim ofendeu os trabalhadores-pintores.
Estes são os dois casos que me parecem mais graves naquele desgraçado comunicado. Ambos ofendem os trabalhadores como trabalhadores, como homens e como homens responsáveis. Ora, não me consta que até agora a "Quinta" tenha dado o dito por não dito, tenha reconhecido concretamente estes erros. E mais: tenha publicamente "pedido desculpas aos ofendidos" – através dos mesmos meios através dos quais larga e oficialmente difundiu o seu comunicado. E esta reparação os trabalhadores exigem-na, em nome de tudo. Menos da tal pretensa "humildade revolucionária". (Quem é que se atreve a falar em nome da Revolução, seja ela cultural, se não respeita o trabalho dos outros? O respeito, sim; a humildade, não.)
Camarada Ramiro, creio que ninguém duvidará da bondade das tuas intensões. Mas nós (vá lá, os trabalhadores), até porque te consideramos e estimamos, exigimos-te mais, mais e mais.
P.S. Leio que "nem tudo o que sai da Quinta Divisão é propriamente da Quinta Divisão...” Camarada Ramiro, aí, ou a gente se zanga ou te pedimos simplesmente para mudar de redactor, depois de lhe teres explicado o a-bê-cê da responsabilidade. Isso é anonimato total, a irresponsabilidade pura. Isso não.